Breves comentários sobre as questões de História Mundial e História do Brasil na prova objetiva da 1ª fase do CACD 2019, o TPS 2019.
Veja aqui a prova aplicada no último domingo 08/09/2019 e aqui o gabarito oficial preliminar divulgado pelo incrível e maravilhoso Iades.
História Mundial no TPS 2019
Para História Mundial minha bússola é sempre o prof. Filipe Figueiredo, que publicou no blog do seu podcast Xadrez Verbal os comentários dele a respeito de todos os itens de HM na prova de 2019, com as sugestões de recursos. Minha contribuição nesse caso é quase nula. Penso que a prova fez algumas escolhas questionáveis sobre o que eleger como temas mais relevantes numa seleção para diplomatas, mas foi coerente e muito competente diante das escolhas que fez. Não vi muito motivo para recursos não. Sobre o item mais polêmico do meu “feed” de mensagens de alunos no WhatsApp, nesse momento, tenho uma brevíssima observação. É o item do Concerto Europeu, em que me parece que é sim possível contestar o gabarito e sustentar que sim, a ordem continental criada após as guerras napoleônicas fundamentou-se em cálculo realista E que isso aconteceu APESAR dos sistemas políticos e valores dos Estados que forjaram essa ordem. Trecho do HRIC, um entre muitos, para ajudar nisso (Sombra Saraiva (org.), História das Relações Internacionais Contemporâneas, p. 51):
“A divisão da Europa em potências reacionárias (…) e potências liberais e constitucionais (…) oferece pouca explicação para as relações internacionais oriundas do Congresso de Viena. Se a Grã-Bretanha, por razões econômicas, apoiou e exigiu o reconhecimento das independências latino-americanas, por razões estratégicas, recusou-se a ir ao socorro dos movimentos liberais e constitucionais que iriam despertar na Europa, na primeira metade do século XIX. (…)”
Amado Cervo
Em outras palavras, o trecho acima afirma que a Inglaterra era monarquia liberal e constitucional, como é sabido. Mas, A DESPEITO disso, apoiou o princípio das intervenções em nome do equilíbrio de poder no continente, com base num cálculo realista.
Outros trechos de muitas outras obras também serviriam para fundamentar esse recurso. E, claro, o gabarito da banca encontraria sustentação em parte da literatura. Não trata-se de questão factual, portanto depende de interpretação.
História do Brasil no TPS 2019
A prova objetiva de História do Brasil no TPS 2019 foi exemplar, top 3 da história do CACD. A banca “foi às compras”: estudou os TPS de anos anteriores e pegou o que de melhor havia na história das questões de História do Brasil do CACD — e não apenas nas questões objetivas. Uma lindeza.
Crises da República, federalismo na regência, partidos e eleições no II Reinado, participação do Brasil na 1ª Guerra Mundial, entre outros temas, foram cobrados de acordo com as mais recentes e relevantes contribuições historiográficas que bancas distintas tinham incorporado ao CACD nos últimos anos. Sua preparação para a 2ª fase deste ano, a meu ver, deve levar isso em conta e adotar estratégia parecida à que a banca adotou: faça o dever de casa e estude tais características das últimas bancas do CACD.
O resultado é que vimos uma prova muito bem elaborada em que eu penso que há muito pouca margem para recurso. É preciso tentar, no entanto. Minha esperança maior é no item sobre o Tratado de Santo Ildefonso. Sim, ele anulou o Tratado de El Pardo. O texto do Tratado de San Ildefonso expressamente o afirma (ortografia atualizada), sem mencionar nominalmente qualquer documento em específico (ortografia atualizada):
Sendo-me presente o mesmo Tratado, cujo teor fica acima inferido e bem visto, considerado e examinado por Mim tudo o que nele se contém, o aprovo, ratifico e confirmo (…) renunciando a qualquer outro Tratado, ou Determinação, que haja, ou possa haver em contrario. (…)
A Rainha (Tratado de Santo Ildefonso, 1777)
Mas a retomada do uti possidetis em 1777 não é um dado inquestionável, muito pelo contrário. O princípio não consta, salvo engano, no texto do próprio documento. Até mesmo a diplomacia imperial, antes de adotar o “uti possidetis da independência” como doutrina de limites, rejeitava as sugestões de Duarte da Ponte Ribeiro com base justamente no texto do Tratado de Santo Ildefonso, como todo cacdista mediano já sabe muito bem.
A propósito, o gabarito preliminar me parece ter sido baseado no seguinte trecho do livro Navegantes, bandeirantes, diplomatas (p. 234):
A doutrina brasileira, desenvolvida no Império, apegava‑se não ao texto do Tratado de Santo Idelfonso [sic!], que era “preliminar” (como diz seu título oficial) e fora anulado pela guerra de 1801 (argumentávamos sempre), mas, sim, a seu princípio fundamental, que era o mesmo do Tratado de Madri, o uti possidetis. Santo Ildefonso serviria, sim, mas só como orientação supletiva e naquelas áreas onde não houvesse ocupação de nenhuma das partes envolvidas, prosseguia a doutrina, formulada em sua versão mais completa pelo Visconde do Rio Branco, em memorando apresentado ao Governo argentino, em 1857.
Synesio Sampaio Goes Filho (p. 234)
Ok, esse é um trecho de um livro constante daquilo que eu chamo de “bibliografia oficiosa” de fato, então fica difícil imaginar reversão do gabarito. Mas estamos no âmbito das interpretações, não do texto do tratado, nem dos fatos, portanto é possível recorrer. Quem enveredar por essa seara, tem aí alguns argumentos, portanto. O próprio trecho reproduzido acima, que provavelmente serviu de base para a formulação do item, também estabelece a distinção entre o que ele chama de seu “princípio fundamental” e o “texto do Tratado de Santo Ildefonso”. Há espaço para recurso, portanto, com fundamento na própria bibliografia.